‘Querida Wendy’: Um Filme Sobre Armas e Falo

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A maioria dos grandes artistas tende a ser egoístas, trabalham sozinhos e não dividem a fama ou o reconhecimento. No entanto, artistas excepcionais conseguem colaborar uns com os outros, como é o caso dos cineastas franceses François Truffaut (1932-1984) e Jean-Luc Godard (1930-), que trabalharam juntos na produção marco da Nouvelle vague francesa “Acossado” (À bout de souffle, 1960), tendo o primeiro como roteirista e o segundo como diretor. Outra parceria de outros excepcionais cineastas ocorreu na produção do filme “Querida Wendy” (Dear Wendy, Dinamarca, 2005), que possui o roteiro de Lars von Trier (1956-) e a direção de Thomas Vinterberg (1969-). 

“Querida Wendy” narra a história do jovem Dick, interpretado por Jamie Bell (1986-), que ficou famoso ao interpretar Billy Elliot; e um grupo de adolescente que mora em uma cidade fictícia do interior dos Estados Unidos. Eles formam um grupo “pacifista” de adoradores de armas. Cada membro do grupo possui a sua arma, nomeando-a e dedicando rituais a elas. A arma de Dick se chama “Wendy”, as da personagem Susan recebem a alcunha de Lee e Grant; já a de Freddie é nomeada de Badsteel (Mau aço), e a de Huey recebe o nome de Lyndon, em alusão ao filme de Stanley Kubrick. Os membros do grupo são chamados de “Dandis” e possuem a regra de “nunca sacarem as suas armas”, pois elas seriam apenas “amuletos”, que dão confiança e autocontrole. 

A narrativa do filme possui uma característica epistolar, há um narrador em off que está escrevendo uma carta para a sua querida arma, por isto o título “Querida Wendy” ser uma saudação, algo típico do gênero textual, havendo a interlocução entre o remetente (Dick) e o destinatário (Wendy). O que vemos materializadas em grande parte do filme são as palavras de Dick em sua carta, o que cria dois tempos: o passado da história, pois o narrador relembra como conheceu a sua querida, e o presente da escrita, ambos os tempos acabam se entrelaçando ao final do filme com a despedida e, consequentemente, o fim da carta, restando apenas o tempo presente e o desfecho em tiroteio da história. 

O cineasta Lars von Trier é um eximio analista e crítico da sociedade estadunidense. No seu filme “Dançando no escuro” (Dancer in the Dark, 2000), ele faz uma crítica ao “sonho americano” do imigrante em contraste com os valores e práticas dos estadunidenses, destacando as suas contradições de pensamento, o que também é feito nos filmes “Dogville” (2003) e “Manderlay” (2005). Já no roteiro de “Querida Wendy” Lars trabalha com o tema do fascínio pelas armas da sociedade estadunidense, tentando compreender de onde surge a “necessidade” e o discurso de justificação do uso de armas. 

Em “Querida Wendy”, os cineastas Lars von Trier e Thomas Vinterberg conseguem ir além do tema sociológico do uso de armas, trabalhando a questão pelo viés psicológico, já que armas são, neste contexto, elementos fálicos que dão poder e autoconfiança ao seu portador. O personagem principal é chamado de Dick, palavra que na língua inglesa é uma gíria para designar o pênis. Elementos fálicos são símbolos de poder, tais como o cetro que expõe o poder religioso e a espada que representa o poder social, em algumas grandes cidades há o obelisco. Na mitologia grega, os deuses possuem símbolos fálicos de poder, como Poseidon que tem o seu tridente. Na sociedade estadunidense e no filme a arma cumpre esta função simbólica. 

Outros filmes trabalham o fascínio da sociedade estadunidense por armas. Em “Tiros em Columbine” (Bowling for Columbine, EUA, 2002), o diretor estadunidense Michael Moore (1954-) faz um documentário tendo como ponto de partida o massacre que ocorreu na cidade de Columbine, em 1999, quando dois jovens estudantes entraram atirando em uma escola, matando alunos e professores e, em seguida, se suicidando. O diretor tenta relacionar o fascínio por armas com o alto índice de mortes e massacres similares ao de Columbine. Já o filme “Elefante” (Elephant, EUA, 2003), ganhador da Palma de Ouro de Cannes em 2003, recria o massacre de Columbine a partir de outros elementos ficcionais e de uma grande qualidade técnica, já que a história é contada a partir de vários pontos de vistas, criando uma narrativa polifônica e tecnicamente perfeita do diretor Gus Van Sant (1952-).

Em “Querida Wendy”, os dois maiores cineastas do movimento cinematográfico conhecido como Dogma 95 se uniram para fazer um excelente filme, com o roteiro e a obsessão de Lars von Trier em entender e criticar a sociedade estadunidense aliada à técnica e ao talento do diretor Thomas Vinterberg. No filme, os diretores partem do particular, analisando o fascínio pelas armas da sociedade estadunidense e caminham para o universal, ao trabalhar as armas como símbolos fálicos de poder, ritualizando o porte de armas, já que há cânticos, rituais e saudações para elas. No filme, mesmo que Dick caminhe sobre a mina e a praça da morte, nada temerá, pois ele tem a sua queria Wendy.

Fatih Akin e o Cinema Germânico-Turco Atual

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O cinema alemão possui dois grandes períodos: o primeiro representado pelo Expressionismo alemão, que floresceu durante as décadas de 1910 e 1920 com cineastas como Fritz Lang (1890-1976), Robert Wiene (1873-1938) e F. W. Murnau (1888-1931). Já o segundo ocorreu nas décadas de 1960 e 1970 com os diretores Wim Wenders (1945-), Werner Herzog (1942-) e Rainer Werner Fassbinder (1945-1982). O melhor cineasta alemão da atualidade se chama Fatih Akin, sendo de descendência turca, ele consegue fazer o que a sociedade alemã tem dificuldades: unir as culturas alemã e turca através de filmes como “Contra a parede” (2004) e “Do outro lado” (2008). 

Fatih Akin nasceu em Hamburgo, na Alemanha, em 1973. Seus pais são turcos que foram para a Alemanha junto com uma grande leva de imigrantes nas décadas de 1970 e 1980. Os grandes pólos de destino foram as cidades de Hamburgo, Mu
nique e Berlim, onde há o bairro turco de Kreuzberg. A sociedade alemã e a cultura turca, neste processo de contato, possuem certa dificuldade de diálogo e assimilação uma da outra, o que cria certa heterogeneidade cultural e conflitos, pois ambas as culturas dividem o mesmo espaço, mas não “se misturam”. O problema se agrava com as primeiras gerações de filhos dos imigrantes, que vivem entre as duas culturas: a materna, turca, e a do contexto, alemã.

Para os descendentes de imigrantes, a dificuldade é maior, há o peso da cultura materna e a riqueza da cultura alemã; há as tradições familiares e a liberdade social. Neste conflito, alguns poucos conseguem uma síntese das duas culturas, o que está acontecendo nas artes plásticas como se pode ver no principal centro artístico de Berlim, o Tacheles na Oranienburger Straßee e, principalmente, no cinema com o diretor Fatih Akin. Em seu cinema, há uma síntese da cultura alemã e turca, algo difícil de acontecer no âmbito social. 

No seu primeiro longa metragem “Em julho” (In Juli, 2.000) Fatih Akin já coloca em diálogo a cultura turca e alemã, o que também ocorre com o seu principal e mais premiado filme “Contra a parede” (Gegen Die Wand, 2004). No filme, temos a história de Síbel, interpretada por Sibel Kekilli, que era atriz de filmes pornogrâficos e, atualmente, na série Game of trhones, e Cahit (Birol Ünel) que se conhecem no hospital após ambos tentarem se suicidar, a primeira cortando os pulsos erroneamente na horizontal e o segundo jogando-se contra a parede, ao som da música “I feel you” do Depeche Mode. Síbel propõe que se casem, pois, assim, ela teria “liberdade” para ter uma vida sem o peso da tradição e as restrições familiares. Acabam se casando, ela para se libertar, ele por compaixão. 

No início do filme e na passagem de diversas cenas, há uma banda turca com o Estreito de Bósforo ao fundo tocando uma música, que serve como prólogo para a ação de algumas cenas. O que se percebe na narrativa é que ambos estão perdidos, Cahit vive uma crise existencial, enquanto Síbel busca uma liberdade de conduta longe das tradições culturais turcas. Casando-se, ela consegue o que tanto almeja liberdade sexual, social, mas não espiritual, ou seja, tudo o que Cahit possui. Elementos da cultura pop, tais como bandas new wave e pós-punk Depeche Mode, Siouxsie and the Banshees, Soft Cell e Einstürzende Neubauten mesclam-se com outros da cultura alemã e turca no filme. 

No seu filme “Do outro lado” (Auf der Anderen Seite, 2008), Fatih Akin aprofunda a questão da identidade do imigrante turco, bem como a perda e a busca de identidade pelos filhos dos imigrantes já influenciados pelas duas culturas. O diferencial neste filme em relação à produção “Contra a parede” é que há mais núcleos de personagens como também pelo fato de parte da narrativa se passar na Alemanha e outra parte em Istambul, na Turquia. Na primeira, um idoso aposentado turco, que mora em Hamburgo, se relaciona com uma prostituta turca e a convida para morar em sua casa com o seu filho, que é doutor e professor de literatura alemã. Com a morte da prostituta, o filho decidi ir até Istambul atrás da filha dela, acaba encontrando-a em um contexto de manifestações sociais. 

Nos filmes de Fatih Akin, as personagens sempre vão para a Turquia em busca de algo: amor, paz e essência. Há o retorno, para a raiz. Mesmo tendo liberdade dentro da cultura alemã, o vazio existencial é algo predominante. Mas, o fato é que a cultura alemã e a turca possuem uma relação de difícil diálogo, o que gera uma segregação social e cultural, sendo quebrada, atualmente, apenas pela arte e pelo cinema de Fatih Akin, que consegue fazer uma síntese das duas culturas. Akin é o melhor cineasta alemão da atualidade e sente o mesmo peso do cineasta francês Tony Gatlif (1948-), produto de duas culturas, em seu caso a francesa e a argelina, como expresso no filme “Exílios” (Exils, 2003). No caso da sociedade alemã, a Arte está sempre na vanguarda, sendo o cinema de Fatih Akin o seu arauto.