As visões da realidade de Shirley

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Eu sou ela, você é ela, Shirley é a expressão da solidão moderna, em uma sociedade que possibilita os indivíduos estarem tão perto, tão longe. No filme “Shirley: visões da realidade” (2013), o diretor austríaco Gustav Deutsch cria uma obra que transpõe a estética do pintor estadunidense Edward Hopper para o cinema. Temas como relacionamento, a melancolia, o tempo, a solidão são trabalhados a partir de uma estreita relação entre pintura e cinema. 
Shirley entra no vagão do trem, há apenas ela e mais três passageiros: dois homens e uma mulher. Escolhe uma poltrona, se senta, abre o livro de Emily Dickinson com o desenho de um quadro de Edward Hopper na capa. Todos estão solitários, viajam sozinhos, não se interagem, o espaço é apenas um lugar para se estar, transitório, passageiro para o corpo, para as relações, para o superficial contato. 

O filme de Gustav Deutsch narra a trajetória de Shirley através de treze quadros, no sentido específico da pintura, sobre os dias e noites do dia 28 de agosto de 1931 passando por anos importantes até 1963, com os principais acontecimentos do período, como a grande depressão nos Estados Unidos, o início da Segunda Guerra Mundial (1939), a Revolução Cubana (1959), entre outros. 

A proposta do diretor é estreitar a relação entre pintura e cinema, é transpor, traduzir os quadros de Edward Hopper para uma linguagem cinematográfica, mas que privilegie a referência, a base pictórica na fotografia do filme. O pintor estadunidense se destacou na pintura, na arte do século XX, por retratar cenas da sociedade moderna, com os seus locais grandes com o homem estático, confinado em espaços pequenos. Em seus quadros há uma paisagem urbana desolada, deserta, melancólica. 

O início da percepção das transformações da sociedade moderna ocorreu com um lírico no auge do capitalismo. O poeta francês Charles Baudelaire foi o primeiro a retratar, em seus poemas, em seus quadros parisienses, a vida, os temas de uma nova sociedade que se configurava. As “flores do mal”, que germinam no espaço urbano, criam sentimentos de tédio, a revolta, a morte, a necessidade da embriaguez pelo vinho. O homem está sozinho em meio à multidão, caminha, flana pelo espaço lotado urbano. Percebe a transitoriedade de passantes, acaricia gatos, admira a beleza transitória. 

Em “Shirley: visões da realidade”, assim como nos quadros de Hopper, há uma dialética entre espaço interior versus espaço exterior. O corpo é a referência do conflito com o espaço, assim como a mente, os pensamentos são o exemplo da dissociação entre o eu e o mundo. Estar no mundo, não é necessariamente fazer parte dele, Shirley está solitária em um quarto, olha para fora, contempla algo que não podemos ver enquanto espectadores, mas que sabemos o que é, enquanto humanos, seres ora menores do que o mundo, ora maiores, de forma que o sentimento no mundo é a melancolia, a solitária existência. 

No filme “Acossado” (1960), do diretor francês Jean-Luc Godard, a personagem Patrícia Franchini (Jean Seberg) pergunta para o seu companheiro, Michel Poiccard (Jean-Paul Belmondo), quem seria mais bonita, ela ou pintura de um quadro pendurado na parede? A relação entre pintura e cinema é uma relação próxima entre imagem e percepção. O crítico André Bazin, no seu estudo sobre a ontologia da imagem, destaca que a representação através da imagem é a própria luta contra a morte, a preservação do corpo. 

No filme “Shirley”, pintura e cinema se relacionam de forma estreita, direta, o quadro cinematográfico busca reproduzir o quadro da pintura nas texturas, nas cores, na luz, na representação, no significado. A mesma proposta ocorre em filmes como “Silvestre” (1981) do português João César Monteiro; “A Inglesa e o Duque” (2001) do francês Eric Rohmer; e a sequência “Corvos” do filme “Sonhos” (1990) do diretor japonês Akira Kurosawa. 

Por fim, o concreto da vida moderna é a solidão, o espaço exterior é a cidade, servida apenas para se estar. O ser contempla, divaga, volta-se para devaneios da realidade, o presente é tão grande, não pode se afastar, resta-lhe apenas estar, sentir a melancolia. Shirley tenta se afastar um pouco, está só na noite, no quarto, pode ser. Os problemas do ser na solitária modernidade são representados pelos quadros de Baudelaire, de Hopper e de Deutsch.

Trailer do filme

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